O trágico rompimento da barragem em Brumadinho em janeiro de 2019 não apenas causou a perda irreparável de 272 vidas, mas também expôs as falhas e fragilidades do sistema de representação sindical no Brasil. O Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada (SITICOP-MG) , atuando desde o início da tragédia, teve um papel na busca por justiça e reparação para as vítimas e suas famílias, conseguindo o segundo bloqueio judicial de R$ 800 milhões na Justiça do Trabalho de Betim, em parceria com o Ministério Público.

A luta por indenizações justas, no entanto, encontrou obstáculos inesperados. A assinatura de acordos que, à primeira vista, pareciam benéficos, trouxe à tona questões sérias sobre a representação dos trabalhadores. O problema não reside apenas nas quantias envolvidas, mas na forma como esses acordos foram feitos e na exclusão de vozes representativas. Quando grandes negociações acontecem sem o devido envolvimento das entidades sindicais que realmente compreendem as necessidades dos trabalhadores, cria-se um ambiente propício para injustiças.
A linha de frente: o papel dos sindicatos
Porém, o que parecia um marco de justiça revelou-se um campo minado. Um novo acordo não ameaça os direitos dos trabalhadores, que já estão assegurados, mas atinge diretamente as entidades sindicais que os representam. Esta é a história de uma luta que tentam silenciar, onde o direito à representação sindical — pilar da democracia trabalhista — é esmagado por decisões que desafiam a lógica e a legalidade. A questão é clara e perturbadora: por que um dos principais sindicatos, representante do maior contingente de trabalhadores, estaria restrito a atuar em favor de menos de uma dezena de profissionais?
O rompimento da barragem foi mais do que uma tragédia humana; tornou-se o estopim de uma batalha jurídica. O SITICOP-MG, ao lado das entidades da construção civil e do asseio, assumiu a liderança dessa defesa, representando centenas de trabalhadores — a maioria ligada à construção pesada, que foi o coração pulsante da obra.
O primeiro acordo trouxe algum alívio aos familiares após meses de assembleias, negociações e audiências, mas deixou de fora o “dano existencial”, também conhecido como “dano morte”. Antes que o prazo de prescrição se fechasse, o sindicato retomou a luta e propôs uma nova ação, indicando aproximadamente 100 trabalhadores substituídos, protocolando o processo na Vara do Trabalho de Betim.

Indenizações aos familiares e representação
A Vale reagiu, alegando que apenas 15 trabalhadores poderiam ser representados pelo sindicato, ignorando o histórico judicial que já havia garantido indenizações aos familiares. Uma tese absurda. Em uma obra dessa magnitude, onde a construção pesada dominava, o sindicato respondeu de forma contundente: a alegação era insustentável.
Dos 250 trabalhadores falecidos, cerca de 131 foram contratados diretamente pela Vale e representados pelo Metabase, enquanto os demais eram terceirizados, vinculados especialmente à construção pesada. A Justiça rejeitou a preliminar da empresa e determinou que o processo seguisse, com valor de causa de R$ 100 milhões.
A Vale foi condenada a indenizar em R$ 1 milhão cada trabalhador terceirizado falecido, totalizando 100 vítimas. Em grau de recurso, o tribunal afastou a tese de ausência de lista de substituídos, consolidando o entendimento de que a matéria já havia sido discutida e decidida.
O Acordo que apaga os protagonistas
Agora, a Vale propôs um avanço: um acordo para indenizar todos os trabalhadores vitimados. Seus direitos, felizmente, estão garantidos. Mas há um veneno na oferta. Na mesa de negociação, a lista apresentada restringe-se a 15 nomes indicados pela própria empresa, ignorando a imensa massa de terceirizados representados pelas entidades sindicais — sobretudo os trabalhadores barrageiros, representados pelo Sindicato da Construção Pesada.
O Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Cláudio Mascarenhas Brandão , relator do acordo, foi induzido ao erro pela Vale ao afirmar que a lista da empresa não foi impugnada na época. Um equívoco gritante, facilmente desmentido pelos autos do processo. A impugnação foi feita, específica e vitoriosa.
Ainda assim, o acordo avança, ameaçando transferir a representação sindical dos trabalhadores para a Defensoria Pública do Estado e da União — uma manobra ilegal, um desrespeito à lei.
O que está em jogo não é mais o direito dos trabalhadores, mas sim o das entidades que os protegem. Representar é mais que um dever, é a razão de existir dos sindicatos. Todos os operários da barragem — da construção pesada, civil e do asseio — estavam amparados por suas respectivas entidades. Suprimir esse direito equivale a anular a própria essência da organização sindical, violando critérios legais de enquadramento e substituição processual.
O enigma que rasga o véu
A grande questão que os arquitetos do acordo querem ignorar é: como uma barragem construída por centenas de trabalhadores da construção pesada teria apenas três representantes sindicais desse setor, quando mais de 50 operários faleceram no instante do rompimento? É como imaginar um oceano com uma única gota d’água. A resposta é evidente: essa estrutura não teria existido. A maioria dos trabalhadores terceirizados estava sob a tutela da construção pesada e negar esse fato é tentar reescrever a realidade, apagando o papel fundamental das entidades sindicais com uma simples assinatura.
Demolindo a farsa com precisão cirúrgica
Os defensores do acordo afirmam que a lista de 15 nomes não pode ser questionada porque não foi impugnada. Mentira! Ela foi contestada, derrotada e sepultada por duas instâncias judiciais. Sugerir que a Defensoria Pública possa substituir os sindicatos não encontra respaldo na lei: a substituição processual é um direito sindical inalienável. O argumento da praticidade — “o acordo resolve tudo” — não pode ser usado para perpetuar a injustiça, sacrificando os sindicatos em nome de um conchavo.
Um espelho invertido
Imagine um farol no meio da tempestade. Os sindicatos são essa luz, guiando os trabalhadores em meio ao caos. O acordo, porém, não salva os náufragos. Se essa troca for aceita, surge a pergunta: quem guiará o barco quando os vigias forem silenciados? O que restará será a escuridão conveniente, onde a luta dos trabalhadores será abafada pela relativização da representação sindical.
Os sindicatos autores, especialmente o Siticop-MG, não são meros coadjuvantes; são os pilares de uma causa maior. A tentativa de usurpar sua representatividade é um golpe contra a Legislação do Trabalho e uma traição à memória dos operários que ergueram aquela barragem com suor e perderam a vida sob seus escombros.
Denunciar isso não é apenas um ato de coragem — é um dever moral. Não podemos permitir que a representação sindical dos barrageiros seja esmagada para que um acordo prospere. O Tribunal Superior do Trabalho não pode se curvar à posição autoritária da Vale. A história ensina que quem silencia é cúmplice. Os sindicatos, feridos, ainda gritam por justiça.
Eduardo Armond, diretor do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada (SITICOP-MG) e também diretor da Confederação Nacional dos Trabalhadores na indústria (CNTI).