
Uma fala aparentemente banal, feita ao vivo durante um debate na CNN Brasil, pode se tornar a peça-chave para abrir um processo criminal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e o senador Izalci Lucas (PL-DF). Izalci admitiu que, ainda durante a transição de governo em 2018, recebeu em seu gabinete denúncias de fraudes de mais de R$ 70 milhões no INSS – e que levou pessoalmente o caso a Bolsonaro. Nenhuma investigação foi aberta.
A revelação desencadeou uma reação imediata de parlamentares do Partido dos Trabalhadores, que apresentaram uma denúncia à Procuradoria-Geral da República (PGR). O documento solicita a abertura de investigação criminal pelos crimes de prevaricação, condescendência criminosa, omissão de comunicação de crime, favorecimento pessoal e improbidade administrativa.
Um alerta ignorado
“Recebi no meu gabinete os peritos do INSS, pois havia indícios de roubo por mais de R$ 70 milhões. Nós levamos isso na transição para o governo Bolsonaro, que imediatamente fez todo o estudo e editou a medida provisória 871”, disse Izalci.
A frase é reveladora. O senador, ao tentar enaltecer uma suposta agilidade da gestão Bolsonaro, acaba por confirmar que informações detalhadas sobre um crime continuado foram recebidas e não encaminhadas a qualquer órgão de investigação. Nenhuma denúncia à Polícia Federal, ao Ministério Público ou à CGU.
Nenhuma sindicância. Nenhum relatório técnico. Apenas uma medida provisória genérica, editada em janeiro de 2019, com mudanças administrativas nas regras de concessão de benefícios previdenciários.
A MP 871, não tinha caráter punitivo nem substitui o dever legal de comunicar o crime às autoridades competentes. A iniciativa pode ter sido, segundo a representação, um artifício para desviar o foco criminal e transferir o problema para o campo político-legislativo.
“Havia conhecimento e houve omissão”, diz representação
Para os deputados que assinam a denúncia, a admissão feita por Izalci Lucas revela que tanto ele quanto Bolsonaro tinham pleno conhecimento de fraudes estruturais no INSS e optaram por não acionar os instrumentos de investigação do Estado.
“A ausência de qualquer iniciativa formal de apuração, substituída por medida legislativa genérica, revela desvio de finalidade e aparelhamento da função pública, com o propósito de evitar repercussões criminais ou políticas” , aponta a peça enviada à PGR.
O texto acusa os dois políticos de deliberadamente ignorarem o dever de agir, protegendo interesses de possíveis envolvidos no esquema, inclusive dentro do próprio INSS. A situação, segundo os parlamentares, configura conivência ativa com crime continuado, o que pode implicar responsabilidade penal direta.
O crime já era conhecido
Desde 2016, servidores da autarquia vinham alertando órgãos internos e externos sobre um esquema de concessão fraudulenta de aposentadorias. Os relatórios foram ignorados por sucessivas gestões.
No governo Bolsonaro, embora o próprio presidente tenha feito declarações públicas sobre a existência de fraudes, nenhuma operação foi deflagrada. Nenhum gestor foi afastado. Nenhum servidor foi punido.
Em 2023, a Polícia Federal e a Controladoria-Geral da União (CGU) lançaram a Operação Sem Desconto, revelando um complexo sistema de desvio de recursos via entidades sindicais e associações fantasmas. Os prejuízos são estimados em centenas de milhões de reais.
Uso político da máquina pública
A denúncia sugere que o governo Bolsonaro poderia ter utilizado as informações sobre as fraudes como instrumento político, optando por não punir aliados ou arriscar desgastes com servidores públicos. Em vez de reprimir, teria legislado. Em vez de investigar, silenciado.
O senador Izalci Lucas, ao mencionar a edição da MP 871 como “resposta” às denúncias, fornece, involuntariamente, a linha narrativa que sustenta a denúncia de desvio de finalidade e instrumentalização do Estado.
E agora
A Procuradoria-Geral da República terá de se posicionar: abrirá inquérito criminal contra um ex-presidente da República com base em uma confissão pública de omissão? Ou arquivará a denúncia sob o argumento de falta de provas, ignorando o peso político e jurídico da declaração de Izalci.