
Imagine a seguinte situação: seus dados são indevidamente utilizados por uma empresa, que lança restrições ilegais em seu nome junto a um órgão de proteção ao crédito. Como se não bastasse, essa empresa vende essa falsa dívida para uma terceira empresa de cobrança, que passa a infernizar sua vida com ligações incessantes, mensagens ameaçadoras, protestos indevidos e todo tipo de abuso para tentar arrancar um pagamento indevido de você.
Ao buscar uma solução legal para esse absurdo, a única via efetiva para garantir seus direitos é o Juizado Especial, onde é possível pleitear uma indenização pelos danos sofridos. No entanto, desde o fim do ano passado, algumas unidades jurisdicionais dos Juizados Especiais de Minas Gerais passaram a impor um entrave inaceitável: exigir, com base no IRDR 1.0000.22.157099-7/002, que o consumidor comprove a tentativa de resolução extrajudicial antes de ingressar com a ação.
O argumento falacioso do IRDR
Em outras palavras, o cidadão deveria primeiro tentar resolver a questão em órgãos como Procon, consumidor.gov ou agências reguladoras antes de recorrer ao Judiciário.
Essa exigência, na prática, é um retrocesso que compromete o acesso à Justiça e beneficia diretamente as empresas que abusam dos consumidores. Há dois problemas evidentes nessa imposição. O primeiro é que essas vias alternativas são notoriamente ineficazes, não oferecem garantias de solução efetiva e, pior, não permitem o pedido de indenização pelos danos morais e materiais sofridos. O segundo é a inversão absurda da culpa: ao invés de punir a empresa infratora, o Judiciário impõe à vítima o ônus de provar que tentou, sem sucesso, resolver administrativamente um problema que nunca deveria ter ocorrido.
O ataque ao princípio constitucional do acesso à justiça
Ao criar esse filtro burocrático, os tribunais estão violando frontalmente o princípio da inafastabilidade da jurisdição, garantido no Art. 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Traduzindo: ninguém pode ser impedido de buscar a Justiça quando sofre uma ilegalidade.
Mas a restrição vai além. Em ações que discutem a inexistência de dívida ou prova negativa, como poderá o consumidor obrigar a empresa a fornecer documentos que apenas ela possui, senão pela via judicial? Esse entendimento cria uma armadilha perversa que favorece exclusivamente as empresas infratoras e prejudica a parte mais vulnerável da relação.
O risco de desmonte dos juizados especiais
Os Juizados Especiais foram criados justamente para facilitar o acesso à Justiça, permitindo que cidadãos processem empresas de maneira célere e sem a necessidade de advogados. Ao impor essa barreira artificial, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais está esvaziando a função original desses juizados, afastando os consumidores da única via real de reparação e, na prática, institucionalizando a impunidade das grandes corporações.
Além disso, a exigência de resolução extrajudicial esvazia completamente o caráter punitivo das condenações por danos morais e materiais. Se a Justiça permite que as empresas exijam que o consumidor perca tempo e energia tentando, inutilmente, resolver um problema que ele não causou, a mensagem passada é clara: cometer abusos compensa.
O tribunal precisa rever esse erro antes que seja tarde
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais precisa urgentemente revisar o entendimento firmado no julgamento do IRDR 1.0000.22.157099-7/002. Se essa regra se consolidar, os consumidores perderão o pouco que ainda lhes resta de acesso à Justiça, enquanto empresas inescrupulosas terão carta branca para continuar lesando impunemente a população.
O Judiciário não pode se tornar cúmplice da burocracia que protege infratores e pune as vítimas. O direito de ação precisa ser garantido, sem obstáculos ilegítimos e sem favorecimentos às grandes corporações. Caso contrário, o cidadão brasileiro estará definitivamente à mercê dos abusos sem qualquer esperança de reparação.
Ítalo Samuel R. C. M. Cardoso de Jesus Advogado Mestrando em Direito nas relações econômicas e socias