
Uma "suposta dívida" milionária entre duas das principais entidades patronais do comércio mineiro — o Sindicato dos Lojistas do Comércio de Belo Horizonte (Sindilojas/BH) e a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de Minas Gerais (Fecomércio-MG) — escancarou um imbróglio jurídico com acusações graves.
Uma denúncia chegou ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) revelando possíveis esquemas de fraude, falsificação de documentos e desvio de verbas. Os indícios foram descobertos através de documentos encontrados em cartórios e registrados pelas próprias organizações, agora servindo como possíveis provas.
Uma ação declaratória com obrigação de fazer, com mais de 400 páginas, também foi apresentada na Justiça do Trabalho de Minas Gerais (TRT), com o objetivo de analisar o um pedido de afastamento da diretoria das entidades. Elas são acusadas de má conduta e de descumprimento de seus próprios estatutos internos, incluindo, a ausência de prestação de conta.
O Portal IG teve acesso, com exclusividade, a inúmeros documentos, alguns deles com os originais registrados em cartórios. Em nota enviada ao IG , a Fecomércio tentou intimidar a publicação da reportagem (veja detalhes abaixo).
Entenda as partes investigadas e os detalhes das suspeitas
O chamado Sistema S , estrutura privada de interesse público, movimenta anualmente mais de R$ 33 bilhões — o equivalente a 0,29% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Os recursos, oriundos de contribuições compulsórias pagas por empresas, têm como destino a educação, a cultura, o lazer e a qualificação profissional.
No mês passado, o Tribunal de Contas da União (TCU) criticou a falta de controle público sobre os recursos repassados ao Sistema S. Embora essas contribuições sejam classificadas como receitas derivadas federais, os valores não são registrados na Conta Única do Tesouro Nacional, o que, segundo o TCU, compromete a transparência e a fiscalizações dos recursos.
As investigações se debruçam sobre supostos pagamentos indevidos, contratos sem transparência e possível desvio milionário de instituições criadas para defender os interesses do comércio.
No centro da polêmica estão Nadim Elias Donato Filho , atual presidente da Fecomércio-MG e presidente licenciado do Sindilojas, e Salvador Ohana , presidente interino do sindicato.
Entre outros citados nas denúncias também aparecem pessoas já condenadas pela Justiça Federal por fraudes financeiras em cooperativas de crédito ligadas, no passado, a Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL-BH) — e que, por lei, estão impedidas de ocupar cargos em entidades representativas.
A legislação proíbe que diretores condenados pela Justiça integrem a diretoria da entidade.
Histórico de escândalos
Não é a primeira vez que a Fecomércio mineira entra no radar do Ministério Público. Em 2015, a Justiça mineira chegou a expedir mandado de prisão contra o então presidente, Lázaro Luiz Gonzaga, acusado de envolvimento em esquema de desvio de recursos do Sesc e do Senac, além de lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Dias depois, a decisão acabou sendo revogada.
R$ 1,4 milhão pagos com base em documento suspeito
De acordo com documentos obtidos pela reportagem, Nadim Donato aprovou o pagamento de R$ 1,401 milhão, em assembleia realizada no dia 28 de maio de 2024. O valor original da dívida era de pouco mais de R$ 1,4 milhão, mas, em valores atualizados poderia chegar a cerca de R$ 20 milhões.
O montante seria referente a uma suposta restituição de empréstimos concedidos pelo Sindilojas à Fecomércio entre 1997 e 1999. O acordo foi firmado sem qualquer aplicação de correção monetária.
A operação se ampara em um parecer do Conselho Fiscal da Fecomércio, datado em 2011, que seria favorável ao pedido do sindicato.
Porém, investigações apontam que o documento pode ser falso porque as assinaturas seriam de pessoas que sequer integravam o conselho naquele ano, e o conteúdo diverge da versão da ata registrada em cartório.
Assembleias contestadas
O pagamento foi aprovada em duas assembleias: a primeira, do Sindilojas, em 7 de fevereiro de 2024; a segunda, da Fecomércio, em maio do mesmo ano.
Ambas teriam sido convocadas e conduzidas em desrespeito às normas estatutárias, com quórum irregular e ausência de publicação adequada de editais.
Documentos ainda apontam que informações cruciais foram omitidas na assembleia — entre elas, a eventual responsabilidade do espólio do ex-superintendente Agenor Ribeiro, já falecido, apontado como um dos responsáveis pelos supostos desvios relacionados aos empréstimos pagos.
Um ex-contador da Fecomércio MG revelou na assembleia que o Sindilojas BH emprestou R$ 1,4 milhão à federação por meio de cheques que não foram pagos e seguem registrados como créditos a receber. Segundo ele, nos registros da Fecomércio a dívida não aparece como obrigação com o Sindilojas, mas sim vinculada ao espólio do ex-superintendente Agenor Ribeiro.
Durante a reunião, a diretora Valéria Clara Carmo questionou qual seria a motivação para que o Sindilojas emprestasse dinheiro a uma federação considerada milionária e com boa saúde financeira. Outro diretor levantou dúvida sobre a legalidade de se justificar o pagamento de uma dívida de quase 30 anos, que poderia já estar prescrita.
Não explicou a origem do empréstimo nem como reconheceu a dívida
Em nota enviada à reportagem, em defesa dos citados na denúncia, o jurídico da Fecomércio tentou intimidar a publicação desta matéria.
“Publicações, divulgações e compartilhamentos realizados por pessoas físicas ou jurídicas que contenham afirmações infundadas ou distorcidas relacionadas à Fecomércio-MG e sua diretoria poderão ensejar responsabilidades civil, criminal e administrativa aos infratores, sujeitando os responsáveis às sanções legais cabíveis”.
O Portal IG e o Vai na Fonte reiteram que todas as matérias são publicadas com base em documentos, dados verificáveis e apuração rigorosa, conduzida com extremo cuidado para assegurar o interesse coletivo — especialmente quando se trata de uma entidade que movimenta bilhões de reais e exerce função de relevância pública.
Na nota, a Fecomércio-MG também afirmou que os assuntos mencionados dizem respeito a “questões de natureza interna”, conduzidas e deliberadas pela diretoria e pelo Conselho de Representantes, instância máxima da estrutura hierárquica.
A entidade complementou:
“Não há qualquer ato jurisdicional ou procedimento institucional instaurado pelo Ministério Público ou por quaisquer outros órgãos competentes que questionem a regularidade dos atos praticados”, sustentando que isso comprovaria “a lisura e a transparência dos procedimentos adotados” e “o fiel cumprimento das normas estatutárias” mostrar a nota da Fecomèrcio.